sábado, 11 de outubro de 2014

A cidade da Vale

Para pesquisador, hoje, a violenta Parauapebas (PA) é a extensão da estratégia ideológica, política e econômica da mineradora.

“A cidade da Vale”, como é conhecida Parauapebas, a maior província mineral do mundo, vive um caos sociocultural. O Mapa da Violência de 2013 mostra que o município, no sudeste do Pará, saltou da 21ª colocação entre as cidades mais violentas do estado para o 10º lugar.


Segundo o estudo, Parauapebas sofreu a maior expansão de homicídios entre jovens no estado paraense. A probabilidade de um jovem ser morto, vítima de disparos de arma de fogo ou por facada na rua ou em sua própria casa, é 25% maior do que no Iraque, país com uma das mais altas taxas de morte por conflito armado.

Com um detalhe: essa dura realidade se passa nas entranhas da 33ª cidade mais rica do Brasil. Isso porque, entre 1997 e 2012, a prefeitura embolsou mais de R$ 1 bilhão de royalties advindos da mineração.


Seu Produto Interno Bruto (PIB), de US$ 2, 1 bilhões de dólares é o segundo maior do Pará e equivale à soma das riquezas produzidas pelos Estados do Acre, Roraima e Amapá. O PIB per capita de Parauapebas – parte da riqueza que cabe a cada habitante do município – alcança o topo no rankingnacional, deixando para trás nada menos que São Paulo e Brasília.


Ademais, é o município que apresenta o maior superávit na balança comercial brasileira. O descompasso entre riqueza e pobreza acompanha a velocidade do inchaço populacional da cidade, que, aos 25 anos, já detém meio milhão de habitantes – grande parte amontoados nas inúmeras favelas que não param de surgir. Em um contexto como este, o alcoolismo e a prostituição aparecem como elemento cultural predominante na cidade.


Em visita à região, o sociólogo Romero Venâncio, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), falou com a reportagem do Brasil de Fato sobre suas impressões ao andar por Parauapebas e comentou sobre saídas concretas que possam mudar a realidade social da província mineral. Na entrevista abaixo, o professor cita a Vale como a principal responsável por esse retrato violento. “O modelo de atuação da mineradora na cidade é antropofágico, de tal maneira que se torna predatório à condição humana.”


Brasil de Fato – Como se explica uma Parauapebas tão rica com uma população tão pobre?

Romero Venâncio – Parauapebas tem um dos PIBs mais altos do Brasil, mas seu desenvolvimento social é desproporcional ao seu crescimento.Ou seja, paradoxalmente, ela tem uma grande arrecadação por conta dos royalties minerais e a prefeitura tem uma margem de manobra econômica como poucas no estado do Pará. Porém, a inoperância dessas instâncias municipais acontece porque elas acabam sendo uma extensão das políticas tecnológicas, econômicas e estratégicas da Vale.


O que o processo de mineração incide no alto índice de violência de Parauapebas?
Temos que entender como uma cidade com grau de caos social como Parauapebas vive cotidianamente sua relação com a Vale. Significa dizer que para manter uma modernização tão violenta e brutal, sobre uma camada inteira da população, proporcionada pela mineradora é preciso forjar além de órgãos de repressão, a existência de uma cultura como forma de contenção social. Quando nós usamos a palavra cultura eu não penso somente na música, teatro e dança, mas uma forma de vida. Por exemplo, o alcoolismo intenso numa cidade como essa funciona como elemento cultural. Além disso, o modelo de atuação da mineradora na cidade é antropofágico, de tal maneira que se torna predatório à condição humana. A Vale consegue culturalmente atualizar aquilo que Karl Marx chamava, nos manuscritos filosóficos, de último estágio da alienação, quando o sujeito está alienado em si mesmo, a brutalidade passa a ser sua forma de agir. Dessa situação dramática da modernização nos moldes que pensava o filósofo Walter Benjamim, Parauapebas hoje está dentro de uma modernização reacionária. Porque do ponto de vista tecnológico, a Vale traz modernização, mas, por outro lado, o impacto ambiental e humano faz com essa modernização seja ativada como reacionária.


É dessa cultura que explode a violência, sobretudo, contra a juventude?
É possível observar que o álcool está aliado em Parauapebas a certos modelos de carros grandes, onde são abertas as tampas traseiras e saem dali um tipo de música que toca toda uma juventude imersa nesta indústria cultural. Aqui, existe uma juventude que, há uma década, é formada nessa lógica da cultura do alcoolismo, da violência contra mulheres, contra negros e pobres, formada pela perspectiva de consumo desses carros grandes com músicas estridentes e completamente vazias.


Como forjar, então, uma cultura diferente numa cidade que não tem uma sala de teatro, nem de cinema, somente no shopping center?

As prefeituras não são responsáveis por criar somente os espaços físicos, mas ao construir uma sala de teatro ela pode dinamizar com editais e financiamento uma programação multicultural. Por exemplo, não se pode como política cultural ter um cinema reduzido ao shopping, isso é desproporcional à cidade. A prefeitura tem condições de criar uma sala de cinema para debate, seminários e poderia fazer uma aliança com setores culturais dos movimentos sociais. Idem com um espaço de teatro e de dança. Esse dinheiro arrecadado da mineração teria a possibilidade de realizar tudo isso. Entretanto, estou falando somente em termos culturais, nem estou tocando no assunto de promoção social, a prefeitura não faz isso porque tem um entrave político. A Vale não é apenas uma empresa de mineração, é um agente econômico, cultural e social e interessa a ela a indústria cultural em Parauapebas. Isso fica evidente quando a mineradora financia legalmente shows diretamente ligados a indústria cultural. Portanto, o caos de uma cidade como Parauapebas não é uma situação impossível de se combater, o problema é que a força da Vale é desproporcional em toda essa região, nenhuma força social consegue competir com a mineradora. Precisamos criar um pacto para outro modelo cultural, que não seja esse da Vale, numa aliança entre movimentos sociais, povos originários, universidade e poder público.

Em sua visita à cidade você consegue visualizar algum espaço diferenciado que escape a essa cultura opressora da Vale?
Sendo uma cultura reacionária, o combate a ela teria que trazer uma forma cultural emancipatória. Dessa forma, o Instituto Agroecológico Latino-Americano (IALA Amazônico) no assentamento Palmares às margens da Floresta Nacional de Carajás, em Parauapebas, se constitui numa forma de emancipação, porque ele não é apenas um espaço agroecológico, mas sim um local de formação cultural. Num momento como esse vivido por Parauapebas, já é uma atitude muito emancipatória a construção do IALA, porque na esfera social tudo conspira contra as características desse modelo de vida pensado pelo instituto. Além disso, penso que essa modernização enriquece pessoas, mas empobrece uma massa. Trabalhar com essa massa empobrecida é o principal desafio dos movimentos sociais hoje no Pará buscando uma via cultural diferente da existente atualmente.


Essa região do sul e sudeste paraense sofreu mudanças espaciais, culturais econômicas e sociais relevantes em pouco tempo. Existe a possibilidade de resgatar algo dos povos originários para amenizar o atual modo degradante de vida?

O monumento da cultura moderna é uma representação da barbárie também. No fundo, a experiência cultural e econômica da Vale sempre abriga uma dimensão de barbárie.

Nessa perspectiva, penso que ressurgir ciclos culturais anteriores é improvável nessa área do Pará. Agora tem uma categoria central como ponto de resistência cultural que é a memória. Essa região abriga uma memória e quando isso acontece você pode esperar muita coisa.


É difícil acreditar que com essa modernização reacionária profundamente violenta nós teríamos uma forma de aboli-la e voltar ao modelo de populações ribeirinhas de outras épocas, principalmente com a introdução em larga escala do celular, do automóvel, o modo como as estradas foram abertas modificando a vida das pessoas. No entanto, a memória sobrevive em pequenos gestos nas experiências culturais em forma de alimentação, vestimentas, modo de se lembrar da região e isso pode nos influenciar culturalmente de maneira positiva.



Romero Júnior Venâncio Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (1994), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (1997) e doutorado Interinstitucional em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe. Atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia Contemporânea, Estética, Teoria da Religião e Teoria política latino-americana. Pesquisador do GEFELIT/UFS (Grupo de Estudo e Pesquisa em Filosofia e Literatura) e GEPALC/UFPB (Grupo de pesquisa em América Latina contemporânea.


Por Marcio Zonta para o Brasil de Fato, publicado em 24/12/2013
Foto: Agência Vale